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“ESTIVE PRESO E ME VISITASTE”

  • Foto do escritor: Wadson Xavier de Souza
    Wadson Xavier de Souza
  • 2 de nov. de 2022
  • 7 min de leitura


A primeira vez que avistei a Penitenciária José Maria Alkimin - PJMA (entre os familiarizados com o sistema prisional mineiro, pronuncia-se: “pijama”) observei uma diferença em relação aos presídios que já tinha visitado, é que uma vez dentro do centro urbano da cidade de Ribeirão das Neves, bastava atravessar uma avenida para ter acesso a uma vila de antigas casas de telhado baixo que margeavam um jardim em retângulo[1]. Até aqui, nada nos levaria a identificar um presídio. Porém, podia-se observar, ao fundo, uma extensa mureta, não muito alta, pintada em branco e cinza, característica similar com outras unidades prisionais do Estado de Minas Gerais.


Passada a primeira impressão, bucólica, do amplo jardim arborizado, adentra-se a unidade por um segundo grande portão, já com as feições de muralha fortificada. Lá dentro, enxerga-se um prédio antigo, local de funcionamento do setor administrativo da prisão, onde trabalham diversos profissionais, entre eles, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, enfermeiros, médicos, advogados, além dos demais servidores do sistema de segurança prisional. Logo atrás dessa construção, localizam-se dois pavilhões em formato de H, retângulos paralelos de quatro andares cada, ligados por um corredor central. De imediato o conjunto todo nos remete a imagem do famigerado “Carandiru” paulista.


Conjugado ao prédio administrativo principal, encontra-se uma construção anexa - local em que fariamos os atendimentos. Neste dia, faríamos mais um “mutirão jurídico”, dentro outros realizados em diversas unidades prisionais da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Trata-se de um esforço conjunto entre os operadores do direito visando o esclarecimento da situação processual de cada encarcerado. Essa construção anexa também dispunha de celas onde eram detidos os “habitantes” da Penitenciária José Maria Alkimin, além de contar com uma escola, frequentada por poucos presos diante da grande massa carcerária ali residente.


Entre os corredores lúgubres que formavam as instalações da escola, desvelava-se uma inusitada homenagem de seu batismo, os dizeres anunciavam que se tratava da “Escola Professor César Lombroso”, remetendo-nos à época em que o complexo começou a ser erguido, no ano de 1927, quando o então governo do presidente Washington Luís construiu a primeira grande penitenciária de Minas Gerais, instalada na então zona rural de Contagem.


Em dia de atendimento dos “custodiados” - mais um dos eufemismos usados para denominar os presos em condições subumanas, em celas superlotadas e sem qualquer higiene, situação percebida pelo volume de infiltração presente em quase todas as paredes do complexo - o clima era bom. Traduza-se “clima bom” por possibilidade mínima de ocorrer uma rebelião, motim ou confusão de menor porte dentro da prisão.


Não à toa, o momento era de renovação das esperanças da população intramuros, afinal o objetivo era dar informação jurídica: a quantas andava o cumprimento de suas penas? Já haviam marcado alguma audiência para serem ouvidos pelo juiz responsável pelo caso? Além dos costumeiros pedidos, muitos já vencidos, de benefícios para trabalhar ou de saídas temporárias para aproximação familiar, as chamadas “saidinhas”. E, o mais importante: a busca pelas decisões sobre a almejada soltura por já terem cumprido o tempo estipulado da pena. “Cantou o alvará, doutor?”, como costumam se referir, muito poeticamente, à expedição do alvará de soltura, ou melhor, “o canto da liberdade”.


Éramos uma equipe de analistas jurídicos, vinculados à Secretária de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, trabalhando em conjunto de esforços com a Defensoria Pública, devido à insuficiência desses profissionais, sentida principalmente na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde se concentra a maioria dos grandes complexos penitenciários do Estado.


Como já mencionado, esses presidiários, por força de eufemismos, presentes também nos regulamentos normativos, são frequentemente denominados de “reeducandos” nos documentos oficiais, em alusão a tentativa do Estado em promover um modelo de ressocialização focada em atividades de estudo e trabalho, apesar de dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apontar que apenas 14,6% da população encarcerada de Minas Gerais realiza atividades de laborterapia[2].


Por isso, os futuros “egressos à sociedade” tinham sede de qualquer informação jurídica em dias de atendimento coletivo. Estava sempre presente a expectativa de obter uma soltura, ao menos alguma previsão dela ou de qualquer outro “direito menor”, pois a grande maioria da massa carcerária não dispunha de advogados particulares ou de defensores públicos suficientes para fazer a análise jurídica detalhada dos casos, não sendo raro encontrar prisões ilegais por excesso de prazo. “Doutor, isso aí tá errado, tô pagando cadeia vencida!”.


Assim, enquanto profissionais especializados em execução penal[3], pudemos observar a face da injustiça em seu estado mais bruto, ao constatar que uma pena imposta já foi devidamente cumprida e que - seja pela morosidade judicial, ineficiência estatal ou qualquer outro nome que se dê ao nosso fracasso social - retirou-se do sujeito alguns dias, ou talvez meses, não raro, anos de liberdade.


Não obstante aos fatos, pleitos e requerimentos demonstrando a ilegalidade na manutenção da prisão do individuo, a decisão judicial nunca era certa no sentido de conceder o tão sonhado (e justo) alvará de soltura, menos ainda a data em que sua excelência, o magistrado, disporia de pauta e tempo para analisar e julgar os destinos da liberdade alheia.


Muitos fatores influenciavam na decisão final do magistrado, como um parecer do Promotor, representante do Ministério Público, favorável ou negativo ao direito pleiteado, documento que poderia sinalizar a real possibilidade de soltura, levando em consideração que a maioria dos julgadores se baseia nas considerações do referido parecer ministerial ao proferir a decisão, devido, entre outras questões, a escassez de tempo para produzir uma análise mais profunda, ponderada, soberana e de acordo com seu livre convencimento[4].


O referido parecer do Ministério Público poderia versar sobre o comportamento do preso (requisito subjetivo), no qual se afere a conduta do condenado durante o tempo em que passou encarcerado. Teria ele ofendido algum carcereiro ou insultado algum funcionário da unidade prisional? Desrespeitado as mais variadas normas internas de comportamento? Tentado fugir? Causado confusão entre os companheiros de cela? Além de muitas outras situações que ensejariam a rejeição do pedido de regresso à liberdade pelo julgador.


Em minha opinião, a mais ignóbil, seria a falta de informação do endereço para fiscalização policial do cumprimento da prisão domiciliar. Situação em que, não tendo o desafortunado ex-presidiário qualquer paradeiro, endereço, residência ou lar para indicar como seu, em eventual fiscalização da autoridade policial, o desabrigado poderia retornar às grades, motivo: descumprimento das determinações judiciais, entre elas, não possuir uma moradia![5]


E aqueles que julgam ser essas pessoas os elementos mais periogosos da sociedade, aqueles que deveriam permanecer segregados do convívio por tempo indefinido, temo por decepcioná-los... a grande maioria dos encarcerados, lá estão por crimes de menor potencial ofensivo (pequenos furtos e roubos - 38,65%) ou sem uso de violência (tráfico de drogas no varejo - 32,39%), conforme os dados do Departamento Penitenciário Nacional[6] revelam.


Ao final do dia, após ouvir as mais diversas histórias ou estórias, não sabiamos identificar a verdade dos relatos, as intenções por trás das lágrimas, súplicas ou até mesmo da frieza resignada; reações que, por sinal, são todas legítimas. Assim, também nos resignávamos ao conceito jurídico do “estado de coisas inconstitucional”[7] do sistema prisional brasileiro e voltávamos para casa carregando sentimentos antagônicos.


Por um lado, satisfeitos e realizados por ter colaborado na escuta de quem necessitava ser ouvido em seus reclames jurídicos, de direitos e garantias, de humanidade, como pessoa digna de reconhecimento e visibilidade, mesmo que sabedores do pouco impacto causado na tortuosa e emaranhada teia da máquina judiciária. E, por outro lado, imensamente frustrados e impotentes em observar a perpetuação de um sistema prisional que encarcera seletivamente - com amplo conhecimento das instituições estatais, midiáticas e acadêmicas - grande parte da população brasileira excluída de direitos, antes mesmo de adentrarem os muros da prisão.


Ao sair do complexo penitenciário, uma lápide prende-me a atenção, nela leio: Giulia Schiappa Pietra – Irmã Maria Bartolo, nascida em 1906 na Itália e morta em 1976 no Brasil. Segundo os funcionários do local, essa freira, dentre outras, morou e prestou assistência religiosa ao presos ali encarcerados, até o fim de seus dias, e deixou como epitáfio a mensagem que, de alguma maneira, reconfortou-me: ESTIVE PRESO E ME VISITASTE.



[1] Em 1937, a Lei 968 criou a Penitenciária Agrícola de Neves, com quatro pavilhões, 200 casas para funcionários e nada menos que 300 mil pés de laranjas. Inaugurado em 1938 pelo presidente Getúlio Vargas, foi a primeira penitenciária autossustentável do continente sul-americano e ela se manteve como um modelo para o sistema carcerário no Brasil por muitas décadas. Disponível em: http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/04/07/interna_gerais,287504/penitenciaria-jose-maria-alkmin-completa-75-anos-e-preserva-origens-agricolas.shtml. Acesso em: ago. 2015.

[2] Fonte: Ministério da Justiça e Segurança Pública/Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional – SISDEPEN.


[3] Nos termos da LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984, a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado, garantindo seus direitos humanos no cumprimento da pena, bem como seu retorno a sociedade quando atingindo os requisitos objetivos (temporais) e subjetivos (comportamentais) para expedição de seu tão almejado alvará de soltura, o que, frequentemente, não acontece em tempo hábil, fazendo com que o individuo amargue dias, meses ou até mesmo anos de prisão indevida – verdadeira privação de liberdade ilegal imposto àqueles que não possuem condições financeiras de contratar advogados particulares e denunciar tal estados de coisas ao juiz responsável por seu cumprimento de pena. [4] Cabe ao juiz, amparado no livre convencimento motivado, avaliar as peculiaridades do caso concreto, podendo decidir de maneira diversa ao posicionamento adotado pelo membro do Ministério Público, desde que devidamente fundamentada sua decisão, conforme dispõe o art. 93, inciso XI, da Constituição da Republica. [5] As estimativas do número total de pessoas em situação de rua no Brasil é de aproximadamente 221.869 pessoas de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em pesquisa publicada em Março de 2020. [6] DEPEN. Departamento Penitenciário Nacional: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Período de Janeiro a Junho de 2020. Disponivel em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen. Acessado em maio de 2021.


[7] Em decisão liminar na ADPF 347, em trâmite desde 27/05/2015, o STF reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. No contexto desse julgamento, o Min. Edson Fachin afirmou que “os estabelecimentos prisionais funcionam como instituições segregacionistas de grupos em situação de vulnerabilidade social. Encontram-se separados da sociedade os negros, as pessoas com deficiência, os analfabetos. E não há mostras de que essa segregação objetive – um dia – reintegrá-los à sociedade, mas sim, mantê-los indefinidamente apartados, a partir da contribuição que a precariedade dos estabelecimentos oferece à reincidência.”


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